carla rebelo
Excerto do texto da exposição I would prefer not to, a partir do conto de Herman Melville, Bartleby, the Scrivener. A story of Wall Street, realizada na Plataforma Revolver em Lisboa.
Maria João Gamito
"Silent Books intitula o livro/instalação de Carla Rebelo. As folhas azuis numeradas, de dois livros, com cerca de 40 cm de altura, densamente preenchidos com registos manuscritos de casas e estabelecimentos comerciais supostamente no distrito de Lisboa, e sem qualquer indicação de origem, data ou enquadramento funcional, desdobram-se como um fólio, preenchendo totalmente o chão de um lugar de passagem.
Livro/instalação ou livro de artista, esta peça, como todas as peças de Carla Rebelo, é uma resposta à interpelação do lugar. Mas neste caso, e de acordo com as palavras da artista, é também uma resposta à sua necessidade de criar um lugar para Bartleby, afinal não muito distinto daquele que o escrivão habitava no conto de Melville: um canto atrás do biombo alto e verde na sala de trabalho do advogado, onde permanecia de pé muito tempo a observar uma parede cega e onde permaneceu depois de removido o biombo. E é finalmente um dispositivo de objectivação da escrita em correspondências inesperadas subtilmente definidas no compromisso das escalas e das relações que elas instauram entre o espaço real e o da representação, e no entendimento do objecto na sua verdade etimológica, como obstáculo ou barreira posta diante dos olhos.
As páginas dos livros de registo de propriedades, cuidadosamente arrancadas aos livros onde um dia tiveram uma função, articulam-se como biombos ou paredes que impedem a passagem num lugar de passagem, tornando absurdo o lugar e obtuso o objecto que nele inscreve a sua desrazão. Essa desrazão é tanto a do real impedimento de atravessar a passagem como a da objectivação do registo escrito que, já distante da monótona tarefa que o copiou e imerso no absurdo da cópia cujo sentido se perdeu, permanece ainda, agora como biombo ou metáfora das paredes das cidades que pertencem a dois lugares e a dois tempos e que em ambos remetem, não para o labirinto onde os homens se perdem por acção de um monumental exercício da razão, mas para a sua forma inversa que é a da mancha que alastra, irracional e entrópica.
As paredes de Carla Rebelo, ruidosas e encriptadas como as paredes das cidades contemporâneas, levantam-se a partir da matéria da escrita que as regista e assim lhes permite aceder a uma permanência que é a da parede como potência da imagem, de todas as imagens para todos os homens que, como Bartleby, as procuram nesse acto tão elementar como essencial de se virarem para uma parede no regresso a si e à sua causa. Três paredes de um lugar de passagem é o lugar que Carla Rebelo encontrou para Bartleby. Nele, como na obra que a antecede, o escrivão permanece, de frente para uma parede, entre o livro que se desdobra como as perspectivas numa cidade e o livro que se abre para ler a cidade e as suas perspectivas."
Maria João Gamito