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A flecha do tempo 

A propósito da exposição Um momento que se repete continuamente 

Galeria Águas livres, 8 em Lisboa

Manuel Valente Alves 

 

O tempo não se vê nem se ouve. Situa-se num misterioso aquém e além de percepções e sensações. Não tem cheiro nem sabor, não se toca, não é quente nem frio, nem seco nem húmido. Porém, a sua passagem deixa quase sempre marcas nas coisas e nos seres, na realidade tangível do mundo. E há sinais do tempo que são construídos pelo ser humano, como os artefactos artísticos e tecnocientíficos, a arquitectura, as ruas e as praças das cidades, que evocam tempos históricos. Também os dias e as noites e as estações do ano, fenómenos naturais que se repetem numa infinita circularidade, estão na origem de muitas das nossas ideias sobre o tempo. O tempo interior, impossível de medir, reflecte aspectos da subjectividade humana, como o pensamento, o amor, a paixão, o ódio...

Mas o tempo em si também é objecto de pensamento. Como nesta exposição de Carla Rebelo, “Um momento que se repete continuamente”, uma pausa no tempo, uma espécie de still que se repete interminavelmente. Uma paragem do tempo para sobre ele reflectir, olhando o infinito que está antes e adiante de nós. Durante esta pausa interminável, o tempo torna-se objecto, um corpo que Carla Rebelo vai dissecando paulatinamente. Reversibilidade e irreversibilidade, finitude e inquietude, céu e terra, água e fogo parecem confluir na descoberta da anatomia e fisiologia do tempo, um universo de relações e teias sem fim, visuais, semânticas e outras. À revelia do tempo que passa, da aceleração cada vez mais rápida de todo o tipo de velocidades, esta obra genésica é simultaneamente tempo congelado e tempo em movimento, “um momento que se repete continuamente”, uma arqueologia de saberes, vivências, experiências e sentimentos.

Carla Rebelo cria uma totalidade a partir de fragmentos, um tempo fora do tempo que habita a materialidade das suas esculturas, a beleza dos seus desenhos e livros. Há linhas que se cruzam e entretecem, tecidos, folhas, cascas de árvore… O momento que a arte de Carla Rebelo convoca é simultaneamente um tempo interior, vivido e eternizado, e um tempo exterior, delimitado pela história, que olha para o passado e se projecta no futuro. Sem descontinuidades. Como nos espelhos paralelos em que o eu-entre-espelhos se desmultiplica em imagens reflectidas que se dissolvem numa perspectiva sem fim. 

A arte de Carla Rebelo é uma ciência da continuidade. Tudo se liga a tudo. É uma teia lentamente tecida, através da qual redescobrimos a infinita complexidade do mundo, a intemporalidade da arte. Muitas das ideias feitas sobre o tempo, a natureza, a vida são aqui desmontadas. Como as ideias de nascimento e morte. O nascimento e a morte não existem no mundo natural. São pré-conceitos destinados a inteligibilizar o mundo, a adaptar a infinita complexidade do mundo às limitações do pensamento humano. Há um infinito antes de nós e depois de nós, gerações que se sucedem e ligam umas às outras. Sem que possamos descortinar, mesmo nos confins do tempo, uma qualquer célula, molécula ou átomo que possamos designar por matricial. E a morte, aquilo que nós chamamos de morte, será tão-só uma mera transformação da matéria, uma mudança de estado.

Nas críticas à teoria do big bang comparam-se muitas vezes as teorias genéticas com os mitos. O que é compreensível. Tanto as teorias genéticas como os mitos procuram voltar atrás, tornar a percorrer o fluxo do tempo. Umas e outros tentam chegar ao grau zero de um processo de conhecimento que visa tornar inteligível o nascimento do universo, da vida e do ser humano.

Na ausência de modelos matemáticos, os mitos alimentam-se da especulação intelectual. A ciência clássica, por seu turno, centra a atenção nas variações contínuas. Os processos genéticos só começarão a ser abordados com o nascimento da embriologia. Como os processos embriológicos não se podem reduzir a variações contínuas, dada a sua extrema complexidade, a ciência, impossibilitada de os teorizar, irá confinar-se, durante muito tempo, à sua descrição. Hoje a genética e os problemas da complexidade estão na primeira linha das preocupações dos cientistas, e inspiram investigações que vão muito longe no conhecimento dos fenómenos, ligando frequentemente a ciência à arte, o finito ao infinito.

A vida é metamorfose, eterna metamorfose. Entre espelhos, projecções do espaço, folhas que lentamente vão mudando de textura e de forma, livros e esculturas, a obra de Carla Rebelo evoca um tempo subjectivo que se projecta para além dos limites da régua e do compasso, da natureza e dos sentidos, e propõe uma reflexão sobre a temporalidade. A sua, a nossa, a do mundo. Uma flecha do tempo que voa nos dois sentidos, sem ziguezaguear.

Manuel Valente Alves

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